quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O castelo branco de Orhan Pamuk

Primeiro romance de Orhan Pamuk, O castelo branco conta a história de um acadêmico veneziano aprisionado pelos turcos no século xvii. Graças aos seus conhecimentos, o italiano escapa do chicote e dos remos da esquadra, mas acaba vendido em uma feira de escravos e, depois de ser comprado por um paxá, é dado de presente a Hoja, um estudioso turco. Quando amo e escravo se encontram, um choque: os dois homens são tão parecidos entre si que chegam a se confundir. Sem nunca abandonar a esperança de voltar à terra natal, o veneziano ensina a Hoja tudo o que aprendera em seu país, e os dois ainda investigam alguns fenômenos naturais. Até que o mestre fica obcecado por uma pergunta: o que faz de nós o que somos? Sem ter uma resposta exata, o escravo procura as pistas, e os dois concluem que a chave dessa questão de identidade está nos sonhos e nos pecados de ambos. Eles então se dedicam a uma longa expiação, na qual narram em pormenores todos os acontecimentos de suas vidas. A intrincada tapeçaria da trajetória dos dois, de obscuros curiosos de província a conselheiros diretos do sultão da Turquia, encobre um estudo delicado e complexo das relações entre a Europa e a Turquia. Mas a principal investigação de Pamuk nesta narrativa fluida e criativa é sobre a questão ancestral que perturba o Hoja e ecoa em todos nós: o que, afinal, forma a nossa identidade e define quem somos? 


O castelo branco é uma fábula de Orhan Pamuk. O castelo branco é uma cidadela que marca o limite da obsessão por saber a verdade sobre si mesmo e sobre os outros, por descobrir sua identidade.
O tema da identidade é nosso velho conhecido: há pelo menos dois séculos o pensamento brasileiro e hispano-americano o visita, quase sempre por caminhos torpes e determinantes, que desembocam em caricatas definições naturalizadas e inspiram discursos políticos canhestros à direita e à esquerda. Por isso, Sérgio Buarque de Holanda alertou, setenta anos atrás, para o duplo risco de sua busca: a identificação não pode ser tão ampla, que tudo caiba nela, nem tão restrita, que só se possa enxergá-la no espelho. Por isso, tantos já alertaram que toda identidade é inventada e só existe em função de seu tempo e da comunidade imaginada por quem a construiu.
Só que Pamuk é turco e publicou O castelo branco, seu primeiro romance, em 1979. A Turquia já vivia, há séculos, o dilema que até hoje a envolve: desejar e desdenhar ser Europa. Como toda fábula, traz um enredo aparentemente simples: a convivência, por décadas, entre um veneziano e um turco. A história se passa no século XVII, o veneziano é um homem ilustrado e narra sua captura pelos turcos, a vida na prisão e, depois, como escravo de Hoja, o turco que queria saber dos “outros” – os europeus – e de si mesmo. São quase idênticos na aparência e juntos tentam desvendar, em embates intelectuais e filosóficos, suas semelhanças e diferenças de “essência”. Hoja, senhor, propõe uma questão que soa infantil: por que eu sou quem sou? O narrador, escravo, é forçado a descrever com detalhes seu passado e seus pecados em terras distantes, agora inacessíveis. Num dado momento, olham-se lado a lado no espelho e não gostam do que vêem.
O jogo, perigoso, não se restringe aos dois: envolve poderosos – paxás e sultões – a quem assessoram e temem, de quem prevêem temerariamente o futuro, para quem fabricam uma poderosa arma militar. É com o sultão que partem para uma guerra longa e errática, cujos objetivos são difusos e cujo limite é o castelo branco que, além do pântano, engole a máquina de guerra e força o desfecho da relação obsessiva.
Tudo é tormentoso na narrativa de Pamuk. Os duplos são incessantes e as misturas de papéis, inevitáveis. O que, afinal, cada um pode aprender sobre o outro? Qual é o limite do eu, do você, do nós? O que fazemos quando a cabeça, afligida por medos reais ou imaginários, se separa do corpo e não conseguimos entender por que estamos dentro de nós? Até a escrita, tantas vezes apresentada como saída e possível aprendizado, se torna agônica na vertigem catártica da identificação que procuram. E, assim, a autobiografia – forma aparente da narrativa – se divisa com a mentira e com a história fictícia e alheia – tema, por sinal, a que Pamuk voltaria, anos depois, no maravilhoso Istambul. Hoja quer provar uma verdade, a própria verdade, e, para tanto, chega a extremos brutais: científicos, religiosos, políticos. Descobre, afinal, que talvez seja preciso esquecer para lembrar e que o único resultado de sua busca é o desespero, o engano.
O castelo branco é uma fábula e as fábulas, sabemos, têm capacidade reveladora. Mas o livro – que deveria ser lido por todos, principalmente nas terras em que as gentes insistem na “revelação” de sua “identidade” – só revela o paradoxo e a inutilidade dessas buscas. Revela a complexidade, a paixão e o torpor das relações, a fluidez das fronteiras. Nos coloca no negativo e lembra que todos temos, diante de nós, um castelo branco.
fonte: http://paisagensdacritica.wordpress.com/2008/02/05/3/

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